A rotina matinal com as crianças é como comer um gelado no Verão. Deve ser rápido o suficiente para não derreter mas lento quanto baste para saborear o momento. É por isso é uma tarefa que exige sistematicamente a nossa atenção plena.

Era um desses dias. Na hora de lavar os dentes, momento sempre ideal para uma mini palestra, a minha filha de 5 anos, proferiu a seguinte nota de rodapé de livre e natural vontade. “Sabes pai. A mãe é mais meiguinha que tu. Tu és mais bruto.”

Caiu que nem uma bomba. Fiquei a olhar para ela com a escova na mão. Os meus olhos pareciam faróis de néon mas sem luz. Os meu neurónios estavam a entrelaçar-se de tal forma que aqueles 5 segundos tiveram a duração de uma vida.

A pasta de dentes acabou por desfalecer de tanto esperar o inicio da actividade prevista. Ao cair no lavatório “acordou-me”. Decidi avançar. Parar agora poderia desencadear um processo emocional irreversível. Sabem ao que me refiro. É aquela coisa que nos acontece por dentro quando nos apercebemos que o que damos não é entendido com a intenção que colocamos. A intenção sendo muito não é tudo. Numa palavra, lágrimas. Ascendente caranguejo.
E foi enquanto a auxiliava que me dei conta do que estava a sentir. Fiquei triste. Não pela comparação feita. Não por ter ficado em segundo lugar nesse ranking de meiguice. Mas pela frieza da constatação.
A energia feminina é tão subtil e sensível que qualquer gesto ou actividade que não se abrace de carinho pode parecer agressivo. Seja o que for que estejamos a fazer isso deve estar com toda a nossa atenção. Só deve na nossa mente e nosso coração existir aquele momento. Atenção plena. É com ela que nós homens podemos utopicamente almejar ter a subtileza da nossa energia feminina connosco. Já tinha referido num artigo que as mulheres são de outra divisão. E são de facto. Aprendo com elas o máximo que posso e consigo. E foi o que procurei fazer com o poema “Tu és mais bruto”. Deixei acontecer em mim esta frase.

Vestida. Creme no rosto. Penteada a preceito. Estamos preparados para sair. Hoje era dia do brinquedo. Num saco preparado previamente por ela lá estava o arsenal de ferramentas cruciais para uma brincadeira de top na escola. Alertei para o peso do dito ser eventualmente demasiado. Resposta pronta e assertiva. “Eu consigo”. O sorrido a fazer lembrar os Golfinhos dava a certeza que ela o levaria até à escola sozinha. Confiei.
A meio caminho começo a ouvir as dificuldades do peso a arrastarem pelo chão. Desta vez o fardo era demasiado pesado. Hesitei mas acabei por fazer “trabalho em equipa”. Este é o termo utilizado por nós quando nos ajudamos lá em casa. Pequei num dos lados do saco e ofereci a minha meiguice em forma de força. Ela aceitou com um obrigado carinhoso e embalado por um alívio suspirado.

Fomos em silêncio o resto do caminho. Chegados à escola. Um beijo de despedida para o resto do dia. Deu alguns pequenos passos no sentido da porta. Deixou o saco arrumado e voltou para trás. Deu-me um abraço. Daqueles em que o pequeno corpo acompanha o movimento dos braços em força. Aquele abraço era uma corda de cowboy em volta do meu pescoço. Era o que eu precisava depois da aventura matinal. Amarrado e sem fuga possível pensei que estava à mercê de mais uma mini palestra. E assim foi. Disse-me.

“Gosto de ti. Estou no teu coração. És fofinho.”
Sem lavatório. Escova e pasta de dentes. Fiquei desarmado. Concluo que um abraço “bruto” também é carinhoso.

Bons abraços. Bons momentos. E toda a atenção plena nesses abraços e momentos.