Sempre gostei de explicar à minha filha como me sinto. Nunca escondi as minhas emoções nem mesmo aquelas de que todos preferimos fugir. Mas acredito que ficamos mais serenos quando compreendemos o que está acontecer connosco. Quando damos nome às coisas. Por isso se ela souber o que sente também fica mais serena.
Lembro-me de um episódio específico em que ela decidiu mostrar publicamente a onda da sua indignação. Perante uma resposta negativa a um pedido seu, aconteceu história. E a cena desenrolou-se num Shopping. Aliás, este é o lugar indicado para treinar os seus super poderes de invisibilidade. Aquela capacidade de se manter calmo perante o olhar de julgamento dos outros enquanto procura educar o seu filho.
Mas voltando à onda de indignação. Ela chorava. Sendo que chorar é um eufemismo. Ouvia-se em todo o piso. As ondas vibracionais provocadas pelas suas cordas vocais acarinhavam os tímpanos de todos.
Com a minha paciência a voar atrás do som dei por mim sem stock e sem tempo para reposição de emergência. Deu-se o alerta de invasão extraterrestre na minha cabeça. É aquele momento que a vista turva. Como diz a minha avó,”baceia”. Tanto como se tivéssemos passado a noite acordados a fazer o IRS e na hora de submeter a declaração a net vai abaixo. Decidi marcar a minha posição de pai. Afinal filha minha não faz estas coisas. Birras não são aceitáveis durante mais de 5 minutos. Dizia para mim. “Eu sou pedagogo. Eu sei como é que se faz isto. O que a vai fazer acalmar agora é a minha firmeza. Arranca Pedro. Força. Faz isso.” E fiz.
Levantei-a do metro quadrado de chão onde ela tinha feito um serviço de limpeza invejável com a roupa, mãos e cabelos. Até brilhava. Segurei-a ao colo com a força de braço de quem faz Zumba braçal. Uma delicadeza apenas para transmitir que era seguro chorar ao meu colo e que eu iria amorosamente ajudá-la a controlar a sua onda de indignação. Caminhámos em direção ao carro. Na verdade a passada era tão larga que me fiz lembrar a Susana Feitor nos Mundiais de Helsínquia. As minhas ancas até estalavam.
Passados longos 15 segundos sem obter a resposta desejada, ou seja, que ela se calasse mudei a tática. Porque um pai atento faz isso. Muda de tática.
Recorri ao pedagógico dedo indicador cruzando a meia altura e na vertical junto aos meus lábios em sinal de silêncio. Dava-lhe a indicação que estava na altura de diminuirmos a intensidade. Naturalmente ela quis ensinar-me outra coisa e não funcionou. Tive de acrescentar a banda sonora indicada para este momentos. “Chiuuuu! Ca…la…-te!” Ser dito de forma silábica é fundamental. Não vindo nos manuais pareceu-me adequado.
O resultado foi surpreendente. Se antes se ouvia num só piso agora o som era geral. O som ambiente que antes se ouvia e que nos incentiva a comprar estava anulado. A central de segurança do espaço comercial estava a caminho porque o sinal de alerta era evidente. Eu precisava de ajuda. Estou em crer que os registos vídeo podem ser testemunha do meu olhar desamparado a suplicar auxílio. Acontece.
Como ainda não existe essa ajuda ela não chegou. Entregue a mim mesmo decidi acalmar-me. Respirar fundo. Mindfulness. Reiki. Meditação activa. Recorri a tudo. Até posturas de Yoga. Depois de a respiração se tornar natural percebi que ainda estava no meu corpo e tinha uma criança de 1 ano e meio ao colo para acalmar também. Elas respondem à energia que construímos e emitimos em consequência das nossas emoções. Decidi colocar-me num estado sereno para serená-la. Decidi amar este momento. Havia algo de importante a aprender. Funcionou rapidamente. As lágrimas sentidas dela estava ainda a correr o seu pequeno rosto. Limpei-as com o toque mais suave que consegui. Acordei o amor que nos alimenta e que adormeceu por instantes. A tristeza dos seus olhos começou a chamar a minha atenção. Dei conta que estava magoada. Fiquei preso nela. Mudei de táctica. Porque um pai comprometido faz isso. Muda de tática.
Perguntei porque tinha começado a chorar. Na verdade perguntar por uma coisa que já terminou só faz acentuar o estado emocional associado a esse evento. Mas precisava entender. Precisava compreender como é que esta criança que confia em mim viu este momento. Precisa aprender com isto.
Ainda a soluçar respondeu-me com o timbre que ainda hoje mora na minha alma “Estou a chorar porque me mandas-te calar.” Fez uma pausa e acrescentou. “E eu tenho o direito de falar.”. Senti-me esmagado. Respondi que tinha razão. E pedi desculpa. As lágrimas escorriam-me por dentro.
Naquele momento validei que os filhos são uma lição contínua de humildade para os adultos. São um passaporte para uma viagem ao mundo escondido do nosso inconsciente. Utilizei o que aprendi na vivência e não nos livros.
Tinha acabado de mandar calar uma criança só porque estava a falar uma linguagem que eu ainda não entendia. Aquele choro era o som da frustração por não ter o que se quer. Como nem sempre é possível ter o que se quer calar essa voz não é solução. A solução é ouvindo-a ensinar a controlar e expressão da sua existência.
Expliquei-lhe que o que sentiu se chama frustração. E que é importante saber conhecer isso. É normal e vai acontecer outras vezes. Eu também me tinha sentido frustrado por não estar a ser capaz de lidar com a situação e por isso mandei-a calar. Mas isso não é solução. É importante que para a próxima vez me dissesse o que queria. Iria ouvi-la com atenção e depois decidia o que era melhor para ela. Surpreendentemente para mim ouvi-me com atenção sem tirar os olhos dos meus. A energia que nos unia agora era muito mais amorosa e respeitosa. Cada um estava agora no seu lugar. Eu sou o grande e ela a pequena. Quem comanda sou eu. E quem comanda respeita e decidi ouvindo os interessados.
As crianças não são adultos em ponto pequeno mas tem consciência dos momentos. Essa consciência superior permite-lhes sentir o mundo à sua volta de uma forma subtil e que alguns adultos já se esqueceram como se faz. É uma pena. Para os adultos e para os seus filhos.
Prometi a mim mesmo três coisas neste dia. Conhecer a origem em mim desta frustração. Nunca mais gritar com a Eva. Perdoar-me sempre que for preciso porque o amor não vem nos livros. É a vivência que o manifesta e o corrige. Mudei de táctica.
Boa viagem.