O palco está montado. Talheres apostos. Pratos na mesa. Copos cheios. “Sentar. Preparar. Birrar.” Começa a corrida entre o talento das “desculpas” da criança para não comer e a impaciência dos pais que vai chegando de metro, sobe à superfície da pele e acaba por aterrar na voz de tenor.
A hora das refeições é um dos momentos preferidos das crianças. Para quê? Para testarem a diversão interna dos pais. “Deixa lá ver se hoje eles estão na boa?”
Existem momentos tão intensos que às vezes parece que estamos a ouvir uma daquelas músicas que só com a introdução já nos deixam a pairar no cosmos. A flutuar nas ondas musicais. Uma espécie de Pink Floyd argumentativo. As crianças conseguem isso com menos acordes.
A cadeira parece ter picos emocionais. Ou um qualquer aroma que mal lhes chega aos sensores dispara aquela metamorfose corporal que serpenteia a vontade. Arrastam-se até à mesa. Lentamente claro. Chegam com uma cara de introspeção enganadora que espera uma pergunta nossa. “O que se passa?”. Segue-se a resposta. “Não quero ir para a mesa.”
Arrumadinhos numa mistura criativa de “mas o que é que eles querem com isto” com um “se fosse no meu tempo!” é preciso ter calma. Não dar o corpo pela alma.
Num desses jantares a criança estava a manter fortemente a sua vontade de aumentar a sua frustração. Percebi que era o momento de mostrar a maninha de trunfo. O “às” fica sempre para depois. Nunca podem saber quando ele sai. Decidi apostar forte. Perguntei se se sentia aborrecida. Disse-me que sim com a cabeça. Mas o movimento foi tão micro que só mexeu o couro cabeludo. Eles gostam de tornar as coisas divertidas. Perguntei-lhe se gostava de se libertar dessa emoção. Disse que sim. Repetiu os “micro moves”. Agora estava mais atento. Percebi logo. Acrescentei que estar aborrecido o uma “seca”. Convidei-a a vir comigo a umlugar onde poderíamos libertar o aborrecimento e depois mandá-lo embora. Onde? WC. Isso mesmo. Ensinei-a que gritar liberta a energia. Gritei primeiro. E ela depois. Puxámos o autoclismo e viemos embora. Fácil. Vinha com um sorriso e bem-disposta. Sentou-se à mesa e comeu. Não sei se é a solução para todo o sempre mas naquele dia funcionou. Aprendi que antes de corrigir o quer que seja é preciso estar na emoção certa para o fazer. Aborrecida não era de certeza a emoção certa.
A refeição pode ser um teste à paciência mas pode e deve ser também, e deve ser, um momento de conversa, lazer, empatia, flexibilidade e criatividade. Para isso acontecer é necessário preparar o terreno. Não é o deles. O nosso. E bem preparadinho.
Recomendo por isso o seguinte:
- Comece sempre por se colocar num estado emocional de disponibilidade para negociar consigo mesmo. As crianças são capazes de nos sentir. Lembre-se disso. Mais tarde ou mais cedo terá retorno positivo de manter a harmonia.
- Ser autoritário não rende lucros a longo prazo. À taxa a que estão juros emocionais a tendência é aumentar a sua dívida de paciência. Seja responsável. “Autorite” com moderação.
- Faça da refeição um momento de alegria, partilha e criatividade. Conte as suas histórias. Invente história criativas. E sobretudo oiça a criança a contar as suas histórias. É maravilhoso.
- Faça uma avaliação constante do seu Rating emocional. Caso a Moody’s da empatia lhe começar a dar classificações de lixo faça uma pausa.
- Finalmente e fundamentalmente permita-se ter tempo para a criança nas refeições. Hoje em dia, com tanta coisa para fazer, corremos o risco de entrar nas Olimpíadas das tarefas. Queremos ter os mínimos para construir os máximos. Isso não existe. Para construir o máximo temos de dar o nosso máximo em cada momento. Seja inteiro. Mentalmente. Emocionalmente. Espiritualmente.
PS: Oiça “Shine on you crazy Diamond”.
Boas viagens.